"Leaving Neverland" - o documentário sobre a vida de Michael Jackson que todos devem ver


Quando comecei a ver Leaving Neverland fui anotando mentalmente aspectos do documentário que não gostava: o facto de ser lançado 10 anos após a morte de Michael Jackson, num puro golpe de marketing que, a meu ver (inicialmente) tirava validade aos testemunhos; as mães dos miúdos (agora adultos) que relatavam a história da sua relação com o cantor de sorriso nos lábios e evidente ternura; etc etc…

No entanto, à medida que o documentário se desenrolava, deixei de anotar mentalmente o que quer que fosse porque a realidade e o horror que me estavam a transmitir era gigante demais para eu me pôr a analisar pormenores técnicos.
Já vi imensos crime docs, alguns deles sobre abusos sexuais de crianças, e há um padrão que se repete: ou são crianças que não têm ninguém, ou são crianças que têm alguém que é ingénuo, inocente, facilmente manipulável, burro. As mães de James e Wade foram isso tudo e muito mais. Deixaram-se iludir pela fama de Michael Jackson e pela boa vida que ele lhes proporcionava. Achavam que era de graça! Mas os filhos pagaram bem as facturas.

Deixar que uma criança de 7 anos durma no mesmo quarto e na mesma cama de um adulto que “conhecemos” há meia dúzia de dias não é normal. Nem desculpável. Um miúdo receber um envelope com centenas de dólares só porque sim não é normal. E por não ser normal deve levantar questões. Entregar assim uma criança daquela idade nas mãos de outra pessoa, deixá-la viver com outra pessoa que não os próprios pais, não tem razão possível. Receber uma casa de presente depois de um filho nosso ter testemunhado em tribunal que não sofreu abusos sexuais não é aceitável. Não existe argumento para defender esta falta de normalidade repetitiva. Estas mães escolheram não ver porque a vida era mais fácil e bonita assim. Isso é imperdoável.

Famílias foram desmembradas, pessoas colocaram termo à sua própria vida e aquelas que escolheram viver fazem-no dilaceradas, pedaços rasgados daquilo que podiam ter sido e não foram. Amordaçadas por um mundo que acha que conhece verdadeiramente alguém só porque sabe o nome, a cara e o trabalho. Um mundo que acredita cegamente e jura a pés juntos e coloca as mãos no fogo por um anónimo que decidiram erigir herói porque cantava e dava uns passitos de dança. A crença de que alguém, só porque é uma estrela, não pode ser um monstro é tão desumana como os próprios abusos em si.  

No final não pode haver uma sombra de dúvida. Michael Jackson foi um pedófilo. Encoberto por um estatuto de superstar que hoje nem sequer seria possível alcançar, tamanha era a sua dimensão, abusou sexualmente de crianças, manipulou-as como só um pedófilo sabe e fez dos pais aquilo que queria. Tinha uma rede que assentava em Neverland Valley - uma propriedade com 2,7 mil acres, recheada de “diversões” infantis com quartos secretos (e camas) em todas elas – e ali fazia simulações com as crianças, cronometrando o tempo que demoravam a vestir-se, sem fazer barulho, caso alguém entrasse no quarto. Havia alarmes nas portas que avisavam sempre que alguém lá passava e Jackson passava tanto tempo a a abusar sexualmente delas como a prepará-las para que nunca se insurgissem contra ele, contra aquele “amor” que ninguém compreenderia.

As duas crianças que conseguiram escapar àquele aprisionamento psicológicos e tiveram o suporte parental e a coragem de o acusar, foram enxovalhadas em praça pública, desacreditadas pelos media, pelos fãs, eles e as suas famílias apelidados de interesseiros que ambicionavam apenas dinheiro.
Isso não é só triste, é desumano. De futuro que nos lembremos sempre desta máxima: as repercussões psicológicas de uma acusação serão sempre menores num falso agressor do que numa vítima verdadeira.  Se for para duvidar de alguém, duvidemos sempre do agressor. Chamemos-lhe “alegado” a ele, nunca às vítimas ou aos abusos.

Há pessoas que não percebem o porquê de grande parte das vítimas de abusos sexuais em criança apenas denunciarem os seus agressores já adultos. Há até quem diga que agora não vale a pena. E relativamente a Michael Jackson haverá certamente muitos que dirão que ele está morto e já não havia necessidade disto. Mas há. Haverá sempre. Porque uma vítima é sempre uma vítima. Independentemente dos anos que passarem. 

Da mesma forma que eles não esquecem o que lhes foi feito, nós devemos-lhes o mesmo. Não esquecer! Não deixar que seja esquecido! Nunca.



Catarina Vilas Boas

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