Das duas vezes que não me despedi de ti

Hoje fui àquele spot onde fui das duas vezes em que não me despedi de ti. Já o revisitei várias vezes, quase sempre pelo mesmo motivo, sem sequer me lembrar que existias! Hoje, não sei bem porquê, só pensava em ti.

Tu és um amigo que eu perdi duas vezes em vida quando ambos continuamos vivos. É tão triste. Não te queria de volta, mas não deixa de ser triste. Tão triste... Passada toda a revolta inicial e todo o rancor, engolidas todas as palavras de ódio fugaz que nunca te disse, é só isto que fica: uma enorme tristeza. Porém não consigo dizer que toda a nossa vivência foi triste. Não foi. Fui muito feliz contigo. 

Ensinaste-me tanto!! Mas tanto que os teus ensinamentos nem cabem dentro de mim e sobem à tona quase todos os dias como se eu estivesse ao teu lado, a falar contigo, a ver-te pintar metaforicamente o tecto da Capela Sistina. Meu Deus, tu eras tão bom!!

Na verdade ensinaste-me tanto que acho que no final já sabia mais que tu. Nunca disseste nem nunca dirias! Mas acho que nos meus momentos mais felizes essa amargura te deve ter toldado o sono à noite. 

Não sei processar dor. Acho que nunca soube... Ou soube mas ao longo do meu percurso algo me desabilitou para a vida. Poderá ter sido uma defesa, um mecanismo que impus a mim própria para não sofrer. Eu reajo à dor com silêncio e desprezo, mancho a fronha da almofada com lágrimas pesadas que mais parecem feitas de sangue de tão apertado que fica o meu peito. Não, não sei processar a dor. Mas apesar de dor ser a única coisa que resta de nós os dois, não foi de dor que fomos feitos. Não foi em dor que nos erigimos. E por isso mesmo me sinto hoje preparada e na obrigação de te escrever estas palavras que nunca lerás, como uma carta de encerramento dirigida aos céus.

És um filho da puta. Mas afinal, não somos os dois? Da equação da nossa vivência que outra certeza poderia resultar? Passámos por tanto juntos! Tu viste-me chorar de nervos e és das poucas pessoas neste mundo que viu esse sinal de colapso. Eu vi lágrimas nos teus olhos de um medo atroz, quando a ideia de perderes quem mais amas te ensombrou a alma. Vi-te definhar de dia para dia numa jaula sem grades, pequena demais para a tua gigantesca monstruosidade profissional. Fiz o que pude para te libertar mesmo encarcerado, dei-te compreensão e tentei ao máximo passar-te toda a ternura que tinha em mim, até à última gota. Dei-te coisas que nem sabia que tinha para dar, porque a corrente que te prendia me prendia a mim também. Era como se tu fosses o meu apêndice. Sem ti vivia, mas contigo vivia mais completa, como deve ser quando vimos ao mundo. O meu pensamento estava quase sempre contigo. 

“Será que ele está bem? Ele está esquisito, hoje não está bem. O que é que se passa? O que é que ele tem? Que posso eu fazer para o ajudar se hoje sou eu quem precisa de ajuda?” 

Acho que te conheço como mais ninguém te conhece até porque tu és eu. E eu sou tu! Há pouco que nos diferencia a não ser o sexo e tu devias sentir tanto isso como eu.

Tu também me deste muito. Se tiver que especificar não consigo dizer o quê mas sei que deste. Sinto-o nas nossas memórias de tempos áureos e também de tempos sombrios. Acho que gostávamos tanto (mas tanto, mas tanto) um do outro que até nos desorientámos. Não conseguíamos lidar com aquilo. Acabámos por nos perder. Não é triste para ti? Não sentes essa tristeza quando te lembras de mim? Ou ainda estás naquela fase de desdém preciso, em que eu sou o alvo, e os olhos te raiam de sangue e a língua de veneno quando proferes o meu nome. Ou “a tua amiga” que é sinónimo de Catarina. Sinónimo de uma necessidade feroz que tens de frisar que eu não o sou para ti. Antónimo do que já fui.

Se não sentes essa tristeza então há mesmo algo muito importante e mais do que o sexo que nos diferencia...

Não sei. Contigo nunca sei. Acho que nunca soube! Sempre me rodeaste de dúvidas e de certezas ao mesmo tempo. Como duas pessoas são capazes de tal coisa sem estarem sequer envolvidas romanticamente é outra das coisas que não consigo compreender em nós.

Tenho as fotos, tenho os vídeos, tenho inclusive o testemunho que me passaste e remendei com fita-cola. A dedicatória que me escreveste e que nunca reli. Como reler? Da primeira vez que não nos despedimos rasguei tudo. Desfiz-me daquilo sem pensar duas vezes. Da segunda vez não consegui. Acho que foi por saber até ao cerne do meu ser que depois daquilo nunca mais. Aquilo era o nosso fim. O derradeiro final da nossa história.

Guardei-o numa caixa selada e olho para ela quase todos os dias. Nunca lá vou. Nunca lá mexo. Sei que está ali mas não me atrevo a revisitar-nos em provas de que fomos mais do que somos agora.

Que é nada.

É tão triste. Mas tinha mesmo de ser assim. Quiçá noutra vida correu bem pior, e numa seguinte faremos mais e bem, até que na 100ª encarnação façamos realmente tudo certo para que não acabemos assim. Nesta, não tivemos claramente essa capacidade. Não a tivemos de tal forma que por mais triste que seja somos nada. De nós resta pouco mais que os comentários doentes que fazemos um sobre o outro aos amigos em comum.

É impossível. Ora aí está mais uma certeza que resulta da equação da nossa vivência. Sermos mais do que nada é impossível. Depois de tudo, é impossível. Deste-me o mundo e tiraste-me o mundo em igual proporção. Tu deste-me um amor para a vida e corrompeste-o de tal forma que eu não podia seguir outro caminho que não o de o abandonar. Esse ultimato é imperdoável. O rumo que tu me fizeste seguir foi  um pecado mortal. Foi o nosso fim. Mesmo que eu quisesse acho que nunca conseguiria perdoar isso. Tu deves sentir o mesmo. Ou não! Se calhar não te conheço assim tão bem...

O que me resta dizer além disto nem eu sei! Sinto que há muito mais, mas o que pode sobrar do nada que somos a não ser este texto cheio de voltas e floreados? 

Sobra este texto então. Fragmentado, feio, mal escrito, cheio de parágrafos que não encaixam como peças erradas de um puzzle (ou de vários puzzles). Cheio de "acho que"... O espelho da minha alma! Fragmentada também e sem coesão quando me lembro de ti. Negra quando penso em ti. Quebrada pelo vazio que deixámos no nada um do outro.

Já disse que não sei processar a dor? A prova é esta carta mal escrita a ti. Que nem para ti é! Imagina se fosse...

Vou lembrar-te até ao fim dos meus dias. Porque tu és um filho da puta. Mas eu sou tu.

Adeus.


Catarina Vilas Boas, the monster

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