Vamos tentar não quebrar mais ninguém

Vamos acreditar, por momentos, que essa história do Adão e Eva aconteceu mesmo. Vamos acreditar, por momentos, que somos todos descendentes desse homem pobre coitado, e daquela mulher tentadora que o aliciou a morder o fruto do pecado e condenou toda a humanidade a uma vida longe do paraíso.

Vamos acreditar nisso por momentos e reflectir no pouco ou nada que a humanidade evoluiu desde então. Sempre em permanente busca do proibido, sempre a desejar carnivoramente aquilo que não pode ter, aquilo que não tem, independentemente das consequências.

Eu, no meio da humanidade, sou das que evoluiu menos. Em constante procura da conquista, do inalcançável. E assim que conquisto, e assim que alcanço, perde todo o valor. Como ouro fosco. Sempre foi assim, desde os brinquedos em criança, aos homens em adulta. Se os tenho, já não os quero tanto assim. Se não os tenho, então quero-os desenfreadamente. O pior de tudo é quando as duas situações se dão em ciclo com o mesmo. 

Que tipo de pessoa sou eu? - forço-me a perguntar. Que rejeito alguém só para depois o aliciar de novo para perto de mim, e depois volto a rejeitar, ficando louca se por acaso não volta? Que tipo de pessoa sou eu? Que quero e penso a toda a hora e assim que tenho comigo a pessoa em quem penso já não a suporto ao pé de mim?

São pessoas, não são brinquedos. Mais do que isso, não podem ser caprichos meus.

E depois lembro-me (forço-me a lembrar) de quando fizeram de mim um capricho, de quando fizeram de mim um brinquedo, de quando fizeram comigo tudo isso que eu agora faço. E tento recordar a imensidão do meu sofrimento, agora tão longínquo - e ao longe tão minúsculo - mas que na altura me estilhaçou, quiçá irremediavelmente e para sempre.

Não deixa de ser irónico... aquilo que uma pessoa quebrada consegue fazer! E como consegue, sem muito esforço, disseminar a sua maleita nas outras pessoas. E essas pessoas, agora também quebradas, vão quebrar mais alguém. E esse alguém outra. E essa outra, mais uma. Ou duas ou três que, por sua vez, quebrarão outrem. É um ciclo interminável. É uma epidemia sem cura. E a culpa? É de quem?

Vamos acreditar, por momentos, que a culpa não é de ninguém. Que partirem-nos faz parte da vida. Que tudo está perdoado e que não há quem fique quebrado para sempre. Vamos acreditar por momentos, como acreditámos na história de Adão e Eva. 

E vamos tentar não quebrar mais ninguém.


Catarina Vilas Boas 


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